Não havia reparado a essa altura que ao meu pé estava um outro observador. De nada ele tomava nota, de nada tinha de explícito, assim, sentado, revelava apenas uma oblíqua curvatura das costas a adicionar aos ombros o peso dos anos que não tinha, mas aparentava ter; de tanto que era pareciam os ombros a ele ceder, aproximando-os cada vez mais da mesa aonde apoiava os cotovelos grossos, que, por sua vez, seguravam-lhe a cabeça, cuja fronte em paralelo forjava a leitura de Ian MacEwan, enquanto seus olhos claramente se demonstravam dispersos às letras. Sua áurea exalava perturbação, seu corpo cansaço.
Tendo um álibi, me aproximei. – "Enduring love"! - Já assistiu ao filme? Laconicamente a interrogação me fora respondida : - "Não". Ao menos, em meio a resposta, tivera a elegância de me olhar a cara; desse breve “não” e dos dois segundos seguintes que segurara a cabeça para o alto, de sobrancelhas saltadas e testa franzida, pude ver...como era possível!? O engano era total, seu corpo e rosto compunham um contraste aterrador. Sua expressão e tom eram de uma desfaçatez, seus olhos de uma prepotência, que, se não me conhecesse, a mim tomaria por um verme. Contudo, não me abalei, a fim de lhe testar comecei a exibir uma sabedoria wikipedista. – É...nem é tão bom assim..., meio lento, sabe?! Quer dizer, eu gosto de filmes lentos, não sei você, mas esse exagera, porque a lentidão parece sem motivos. E a adaptação mudou muita coisa, perdeu o mistério... mas, enfim, tem o Daniel Craig e aquela loirinha bonitinha, a Samantha Morton, conhece?
– Sim, não acho bonita.
Nesse momento elevei o Wikipédia à categoria de semi-deus – já que a divindade absoluta pertence ao google - ele fez esse babaca com cara de “muita coisa” expressar uma opinião! Prossegui, então, o mais irritante possível: - Pois é, como dizem “gosto é igual a cu”. Depois de ler esse livro, e, por tê-lo feito, visto o filme, comecei a pesquisar sobre a síndrome de clèrambault, sabe? Dizem que fica mais claro se uma pessoa foi acometida por ele em seu último estágio – o rancor. Ele riu. Achei que fosse me mandar para o inferno, mas riu e disse: - Peguei esse livro com a minha irmã, até então do autor só conhecia o filme que adaptaram e foi interpretado pela Charlotte Gainsbourg...falamos em uníssono “The Cement Garden”. - Um dos meus filmes prediletos, revelei.
Trocamos mais algumas informações. De repente, sua fisionomia não me parecia tão diferente da minha. Passada uma hora de conversa, demos um “até logo” com vista de nos encontrarmos novamente, eu precisava...seilá, ir embora.