"você acredita em médico?! não! vai por mim, põe uma roupa bem bonita, entorna uns gorós de cachaça e vai lá se vingar dessa pessoa sim. agora!"

sexta-feira, 28 de maio de 2010

àquela mulher


- Desculpa, posso falar com você? Sim, serão só poucos minutos. É que eu gostei muito da sua fala; na verdade, ela me deixou perturbada. Ai, me desculpe...deixe-me pegar suas folhas, eu já sou um pouco atrapalhada em estado natural, você me entende? Derrubei tudo...Aqui, a sua caneta. Ir para outra sala? Claro! Um café seria ótimo também. Você é mãe? Duvidei mesmo que fosse, só perguntei para certificar... “O Tempo”, gostei muito mesmo do que você falou sobre ele...“o silencio do bebê” é aterrorizante sabia? Eu não quero fazer disso uma consulta, é que eu preciso falar senão explodo. Jura que não tem problema? Você é muito gentil...estou nervosa, posso fumar? Eu tento parar...mas por quê? Me dá prazer...eu tenho tão poucos nessa vida. Você tem isqueiro? Claro que não! Eu acho aqui nessa bolsa...só vai demorar um pouquinho...aqui está! Bem melhor agora....eu já quis matar a minha filha. Eu já quis matar tanta gente, mas de fato só o fiz com uma cadela...ela estava velha já, era nojenta, tinha câncer...enfim, um estorvo rondando pela casa, moribunda, latindo, latindo, cagando tudo...era enorme. Não, me deram-na quando ainda era pequena, assim que morreu o cachorro do meu marido, digo, o animal que ele tinha antes de me mudar para a sua casa. Pode rir, mas o adjetivo aplicado a ele não seria bem esse. Não, quem “cuidava” dela era ele. Eu tinha a criança para tomar conta e a casa inteira para arrumar, comida para fazer, e roupa, etc... no mínimo, o quintal e os animais deveriam ser sua responsabilidade. Claro que mesmo assim ela me incomodava, ele não fazia nada direito e havia de ser eu a limpar tudo como se DEVERIA ter feito, no final das contas. Quando pequena? eu gostava dela, animais pequenos têm poucos vícios e têm carinha de anjo... Eu tive depressão pós-parto...veja só, se o silêncio já me era aterrorizante, imagine o barulho, o choro, a necessidade. Eu estava apavorada! Tinha alguém que precisava de mim para sobreviver, e tinha eu que precisava de outro alguém que não precisasse de mim. O meu marido? Você também não é casada, certo? Ótimo, continue estudando. Não sabia o que fazer...tinha feito merda, sabe, uma grade merda...eu era muito nova. Bem mais nova do que você agora. Não lhe estou chamando de velha, mas é um fato. Eu não sabia nada da vida...dessa vida; achei que estivesse comprando o passaporte para o paraíso...cinderela desenganada. “O tempo é inferno”, mas o tempo a gente guarda sim. Cada segundo é a vida toda, cada segundo tem o tempo de 50 anos.  Ela está bem...vive se queixando, acha quem tem problemas, mas não sabe de nada disso que estávamos falando agora, da vida. Eu quero que ela seja tudo o que eu não fui, tudo o que eu ainda quero ser, mas sei que não serei, e acho que ela vai. Às vezes tenho raiva, sabe?!...não gosto de admitir isso, mas preciso ser sincera com você. Eu tento ser melhor. Eu sou  melhor do que antes, só que é tão triste admitir o fim quando ainda se quer mais, ou melhor, quando ainda nem ao menos se começou. É tão frustrante você ser o outro, se ver no outro tendo esse “mais” e não senti-lo, não saboreá-lo. Eu tenho fome de pratos novos, franceses, indianos, japoneses, e tenho que me empanturrar de pão seco para ver no outro escorrer pelos cantos da boca o meu desejo, me fazendo salivar. È tortura, você entende? Eu não quero me sentir culpada por lhe falar isso, mas eu me sinto...em algum lugar há essa culpa. Porra, eu sou humana! Eu era violenta. Não quero falar disso. Não consigo. Foi uma época muito ruim, eu estava numa dessas inserções anti-tabagistas, estava com os nervos à flor da pele. Mentira, a quem estou enganando? Eu fui violenta durante anos. Era a repressão “recalcada”! Criamos demônios dentro de nós, acredite. Meus pais alimentaram o meu durante vinte anos, assim como os meus irmãos...aquela tirania machista-religiosa. Somos bicho humano, ou, ora bicho, ora humanos. Uma vez ela me culpou, eu não gosto de admitir, não consigo...não para ela, nem para ninguém...só pra você. Eu contei a ela a minha vida inteira, contei e recontei. Você acha que ela me entende? Acha?