"você acredita em médico?! não! vai por mim, põe uma roupa bem bonita, entorna uns gorós de cachaça e vai lá se vingar dessa pessoa sim. agora!"

quarta-feira, 9 de junho de 2010

o caso de P. Garcia ( parte I)

"I hurt myself today, to see if i still feel,
I focus on the pain, the only thing thats real, 
The needle tears a hole, the old familiar sting,
try to kill it all away, but I remember everything"  
 
Se ele pudesse, escreveria isso. Das pontas dos seus dedos se desenhariam essas formas, nada mais. Nada mais do que se passara naquela noite, naquela única noite.
Começaria assim, rasgando o papel com o seu nome trêmulo L., e saberia ser essa,  apesar de pequena, a forma mais difícil de alcançar. Sua sinuosidade desafiaria as mãos torturadas pelo frio daquele inverno, mas lhe daria o sangue que faltava. Aqueceria lentamente a mão direita naquelas curvas a marcar todas as outras páginas de seu "caderno de reminiscências, poemas e pequenas citações", como se quisessem permanecer em todas as palavras que ele escrevesse daquele momento em diante.
                                                              
Assim seria, se não fosse. Uma única noite. Uma eterna espera.
Daquele quarto nunca mais sairia. Guardava uns pacotes de cigarro no armário e se satisfazia ao saber que fumava pouco o suficiente para não ter de comprá-los tão em breve, junto deles estavam uma garrafa de vodka inteira e outra pela metade. Sabia ser esse vício não tão brando quanto o outro, portanto, brevemente teria de comprar mais, contudo, deixara a preocupação sobre o método  de aquisição  para  a hora chegada – já que, até o momento,  não havia “disk vodka”, e no passar de horas não inventariam um; mesmo se o fizessem, não teria como saber.
No banheiro, previamente checado, estavam todos os suprimentos necessários. Da comida já havia se encarregado, caso viesse alguma reclamação natural de seu corpo, coisa que raramente acontecia, pediria pelo telefone a alguma “in box” de comida chinesa, que seria levada pelo entregador até a porta de seu quarto. Os moradores do primeiro andar do sobrado – um casal de velhinhos muito simpáticos, fariam a gentileza de abrir o portão e indicar as escadas que davam de pronto a sua habitação. Muito cuidadoso, ele disfarçara o possível estranhamento perante a reclusão com uma doença contagiosa gravíssima, quase letal, se contraída por pessoas da terceira idade. Com esse subterfúgio, garantia a distância do casal e o tornava ainda mais prestativo por condolência, pois o jovem demonstrava importar-se com sua saúde.
Parecia perturbado em sua espera, mas, de alguma forma, justo na nova condição. Preenchia suas horas lendo “o homem sem qualidades”, as quase mil e quinhentas páginas aliviavam qualquer ânsia de nada, tendo em vista a sua sempre minuciosa e lenta leitura de tudo; escutava alguns cds por dia - há pouco, embora tardiamente, descobrira a coleção “American” do Johnny Cash, emocionava-se bestialmente com cada música, não unicamente pelas canções, mas pela voz sofrida que aquele senhor empunha.
Quando cansava a vista, deitava de olhos cerrados se transportando a duas noites anteriores, quando acontecera. A bem da verdade, não precisava fechá-los para lembrar de nada, o quarto estava exatamente como então, mas a ilusão do trans o fazia mergulhar num plano sinestésico onde os lençóis tomavam corpo, além de ainda exalarem o cheiro, era como se o tempo voltasse e a matéria fosse irrelevante ao sentir. Experimentava seus pés aquecendo exatamente como quando os colocou em perfeito encaixe embaixo das pernas, o seu corpo contorcer com os dedos que deslizavam espinha acima, caindo sobre a nuca, e a boca que levava consigo algumas palavras sussurradas ao ouvido e faziam descer-lhe o sangue.  Era real demais. Dessa vez, a voluptuosidade do trans  descerraram cruelmente seus olhos, deixando penosa a sua expressão frente à imagem da cama desfeita. Algum sentimento de raiva o tomara nesse momento, mesmo sem entender o porquê - afinal, o problema se resolveria com o tempo, o encontro. Ele se levantou à procura da garrafa de vodka, bebeu calado. Aquilo passava.
Quarto dia.
Acordara pouco disposto, tateou a mesinha de cabeceira, pegou o maço de cigarros e o isqueiro, como não encontrou nada com o formato de um cinzeiro, bateu as cinzas no chão. Não era de seu feitio tal desleixo, mas o seu íntimo parecia não  importar.  Decidiu olhar a mesinha para conferir,  realmente estava ali,  junto do cinzeiro também estavam dois copos, um ainda com algum líquido preto - provavelmente café -,  lembrou do garçom simpático, tanto quanto desajeitado, que conhecera e com quem conversava todos os dias no seu almoço. De súbito, sentiu fome, seria essa a primeira vez que pediria comida. Não tinha desejo de falar com ninguém...recordou a infância e todas as táticas anti-dispêndio de energia que inventavam as crianças, à essa época achava que seria engenheiro, também achava que seria biólogo. Levantou-se, não era nenhuma invenção original, nem ao menos era uma invenção, simplesmente pegou um cabo pouco grosso para poder amarrar um peso de papel junto com um pequeno envelope, abriu a janela – era noite, reparou que era sempre noite, jogou o rabicho. O estilhaçar do peso chamou atenção da senhora que morava abaixo, como intentava. No envelope havia um bilhete, dizia: “Dona Sônia, desculpe se causei susto, pedi comida pelo telefone. O dinheiro está aí, dê a gorjeta, fique com o troco e amarre a comida no cabo, por favor.”
A senhora não entendeu porque ele preferiu isso a ligar para ela, de qualquer forma, relevou, e se dispôs ao pedido.
Enquanto esperava, colocou The Man Comes Around para tocar.